Sabemos que as virtudes divinas e
os valores espirituais são de valor insuperável, e que os bens mundanos são
perecíveis. No entanto, é difícil ver exemplos de pessoas que reneguem fortunas
para buscar os valores cristãos. A Sagrada Escritura nos relata Zaqueu,
cobrador de impostos e muito rico, que após se encontrar com Jesus prometeu: “Senhor,
vou dar metade dos meus bens aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver
quatro vezes mais” (Lucas, 19, 8). São Francisco de Assis foi ainda mais
radical: renegou toda a fortuna que herdara do pai e se entregou de corpo e
alma à uma vida simples, pobre e de seguimento à Cristo.
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São Francisco de Assis nasceu em
1182, tendo partido para a Eternidade em 1226, aos 44 anos de idade. Na região
e na época em que viveu era grande o apego ao luxo e às riquezas, o que minava
a sociedade e causava danos à Igreja. Propôs ele um novo ideal de pobreza,
obediência e castidade, tendo fundado a Ordem dos Frades Menores
(franciscanos), que se expandiu pelo mundo através de várias ramificações.
Também, com Santa Clara, fundou a ordem das Clarissas.
Havia se iniciado o século XIII.
O jovem filho de um bem sucedido comerciante da cidade de Assis, até então
apegado às amizades, aos bens materiais e às atrações do mundo, como a quase
totalidade dos rapazes de sua idade, começa a inclinar-se à carreira das armas.
Em uma batalha foi preso, tendo de aguardar cerca de um ano até ser resgatado,
quando então foi prostrado por uma doença. Recuperado, tentou novamente
engajar-se em um exército, porém o chamado de Deus foi mais forte: o jovem
João, apelidado Francisco (nome pelo qual se tornou conhecido), voltou-se para
o Criador, pois passou a vê-lo com os olhos do espírito ao considerar as
virtudes através das quais Ele se revelava.
A juventude e a
conversão
Francisco trabalhava como
comerciante, e mesmo gostando de obter lucros jamais se prendeu
desesperadamente ao dinheiro e às riquezas, gostando, por vezes, de ajudar os
pobres. Era muito rico, mas não avarento, e sim pródigo e gastador; um
negociante esperto, mas ao mesmo tempo esbanjador insensato. Era gentil,
paciente, afável e manso, mas nem sempre as qualidades se sobressaíam naquele
jovem que tinha por objetivo a vida mundana.
Certa vez um pobre adentrou a
loja em que estava Francisco ocupado com os negócios, para pedir uma esmola
pelo amor de Deus, sendo despedido com rispidez sem nada ganhar. A consciência
de Francisco logo o acusou, dizendo: "se ele tivesse pedido algo em nome
de algum conde ou barão, com certeza o terias atendido; quanto mais não o
deverias ter feito pelo Rei dos reis e Senhor de todos". Tomou ali
Francisco a decisão de nunca mais negar o que lhe fosse pedido em nome de tão
grande Senhor.
Francisco passou a dar generosas
esmolas aos pobres que encontrava, inclusive distribuindo suas roupas e outros
bens, procurando assim seguir o mandamento do amor ao próximo tantas vezes
ilustrado pelos fatos e parábolas narrados nas Sagradas Escrituras. Passou a
ser alvo de críticas e deboches por parte dos habitantes da região, e de grande
raiva por parte de seu pai, dotado de profundo apego a todos os bens e riquezas
que acumulara no comércio de tecidos em que enriquecera.
A rejeição ao mundo e
a entrega à pobreza
O conflito familiar chegou a tal
ponto que o pai de Francisco, Pedro de Bernardone, levou o caso ao bispo,
acusando o filho de dissipar sua fortuna e exigindo uma compensação por tudo o
que fora por ele retirado de sua loja para dar aos pobres. Então o jovem,
inspirado pelo Espírito Santo, tomou a decisão inimaginável por todos os que
ali presenciavam a cena: entregou ao avarento progenitor tudo o que tinha
consigo, inclusive as próprias roupas, e disse: doravante não mais direi
"meu pai Pedro de Bernardone", e sim "Pai nosso que estais no
Céu". Coberto apenas pelo cilício (um áspero couro animal destinado a
incomodar a pele, que usava sob as roupas para combater certos impulsos
corporais), Francisco foi então abrigado pela capa cedida pelo bispo, ali
renunciando publicamente à herança; pediu a bênção episcopal e partiu para a
vida de pobreza, passando depois a ter por companheiros vários amigos que
quiseram seguir a mesma via de perfeição. Não chegara sequer aos 25 anos quando
esses fatos ocorreram. Era o início da família franciscana, que não se
restringiu ao sexo masculino, pois Francisco, com a jovem Clara - que se
inclinou a seguir os passos desse santo homem -, fundou o ramo feminino, que
obteve do papa Inocêncio III o reconhecimento do direito de ser pobre e de nada
possuir.
Diz-se que Francisco e a Pobreza
contraíram um casamento místico. Na verdade, conforme estudos aprofundados
feitos nos antiquíssimos escritos históricos e alegóricos a respeito do
Fundador e dos primeiros franciscanos, nota-se que o que Francisco fez foi uma
vassalagem mística com a Pobreza, a quem se entregou para servi-la. A ela se
referia como "minha senhora", expressão que na época caracterizava
uma obediência e com a qual se entregava àquela virtude que tanto admirava.
Entre as mais famosas e
importantes virtudes, que no homem preparam um lugar para Deus e ensinam o
caminho melhor e mais rápido para chegar até Ele, a santa Pobreza sobressai a
todos por uma certa prerrogativa e supera os títulos das outras por uma beleza
singular. Ela é fundamento e guardiã das virtudes todas, e entre as conhecidas
virtudes evangélicas ela tem, merecidamente, um lugar de honra. Essas palavras
iniciam o texto alegórico que mostra a relação mística entre o Fundador
franciscano e a Senhora Pobreza, esposa de Cristo.
A Oração da Paz,
espelho do amor ao próximo
Em tudo Francisco procurava seguir o Evangelho, como bem se
pode perceber nas belas palavras da Oração da Paz que externam o amor ao
próximo, e que nunca perderam a atualidade:
Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei com que eu procure mais consolar que ser
consolado.
Compreender que ser compreendido; amar que ser amado.
Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
Algumas admoestações de Francisco evidenciam a paz e o amor
que se deve ter para com o próximo. Disse ele, comentando as palavras do Divino
Mestre "bem aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de
Deus": São verdadeiramente pacíficos os que, no meio de tudo quanto
padecem neste mundo, se conservam em paz, interior e exteriormente, por amor de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Disse também que é bem aventurado o homem que
suporta o seu próximo com suas fraquezas tanto quanto quisera ser suportado por
ele se estivesse na mesma situação. E ainda, referindo-se à benquerença que
deve reinar nas Casas da família franciscana: Bem aventurado o servo que ama o
seu confrade enfermo que não lhe pode ser útil, tanto como ao que tem saúde e
está em condições de lhe prestar serviços. Bem aventurado o servo que tanto ama
e respeita o seu confrade quando está longe como se estivesse perto, e não diz
na ausência dele coisa alguma que não possa dizer na sua presença sem lhe
faltar à caridade.
Irmão Sol, irmão
vento, irmã água, irmão fogo
Vendo a presença de Deus em tudo, Francisco compôs o belíssimo
Cântico das Criaturas em que manifesta irmandade até mesmo com os seres
inanimados ao neles perceber que, como o homem, foram criados pelo Altíssimo, a
quem é devido todo o louvor:
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra, e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos,
e nenhum homem é digno de te mencionar.
Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia e com sua luz nos ilumina.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor;
de ti, Altíssimo, ele é a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas;
no céu as formastes claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,
pelo qual iluminas a noite.
Ele é belo e jucundo, e vigoroso e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra,
que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos,
com flores coloridas, e ervas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu
amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados aqueles que as suportam em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã, a Morte
corporal,
da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar conformes a tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças
e servi-o com grande humildade.
Saudação à Mãe de
Deus
A Santíssima Virgem, honrada na
capelinha de Santa Maria dos Anjos (a Porciúncula, de onde Francisco, ao findar
seus dias neste mundo, partiria rumo à Casa do Pai) era especialmente venerada
pelo Pobrezinho de Assis, que lhe compôs uma singela saudação:
Salve, ó Senhora santa, Rainha
santíssima, Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita igreja, eleita pelo
santíssimo Pai celestial, que vos consagrou por seu santíssimo e dileto Filho e
o Espírito Santo Paráclito! Em vós residiu e reside toda a plenitude da graça e
todo o bem! Salve, ó palácio do Senhor! Salve, ó tabernáculo do Senhor! Salve,
ó morada do Senhor! Salve, ó manto do Senhor! Salve, ó serva do Senhor! Salve,
ó Mãe do Senhor, e salve vós todas, ó santas virtudes derramadas pela graça e
iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, transformando-os de
infiéis em servos fiéis de Deus!
Discernindo em tudo o
Criador
Dois anos antes de passar à
Eternidade, o Pobrezinho de Assis compôs um belíssimo hino de louvor a Deus,
cuidadosamente registrado e passado à posteridade por um de seus seguidores.
Nele se percebe como procurava Francisco, em tudo, discernir o Criador:
Vós sois o santo Senhor e Deus
único, que operais maravilhas. Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo.
Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do Céu e da Terra. Vós sois o Trino e
Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem,
Senhor e Deus, vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a
Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança.
Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e o Júbilo. Vós sois a Justiça e a
Temperança. Vós sois a Plenitude da Riqueza. Vós sois a Beleza. Vós sois a
Mansidão. Vós sois o Protetor. Vós sois o Guarda e o Defensor. Vós sois a
Fortaleza. Vós sois o Alívio. Vós sois nossa Esperança. Vós sois nossa Fé. Vós
sois nossa inefável Doçura. Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso
Deus, Senhor Onipotente, misericordioso Redentor.
Vê-se, nessas inspiradas
palavras, o profundo entendimento das riquíssimas qualidades de Deus
manifestado por aquele que se entregou à pobreza, e que abraçou os conselhos
evangélicos e as demais virtudes que tão bem percebia no Criador, a quem se deu
por inteiro. Dotado de personalidade marcante, Francisco deixou-se impregnar
pelas qualidades divinas de tal forma que não só a época em que viveu ficou
marcada por sua passagem por este mundo, mas também os séculos que se seguiram.
Deixou-nos ele um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das
perfeições de Deus - que chegavam a levá-lo a um verdadeiro êxtase - e do amor
que se deve ter para com Ele, sem o que nenhuma religiosidade atinge sua
plenitude.
Assemelhando-se cada
vez mais ao Altíssimo
Francisco tanto amou o Altíssimo
que não só no espírito, mas também no corpo, assemelhou-se a Deus. Cerca de
dois anos antes de sua morte, foi agraciado com as marcas da Paixão de Cristo,
passando a ter nas mãos e pés as feridas correspondentes à crucifixão; na mesma
ocasião também foi dotado de uma chaga correspondente à que foi feita pelo
soldado que, com a lança, transpassara o coração de Jesus. Indo de encontro à
cruz, teve a glória de receber os estigmas do Crucificado.
Os estigmas da Paixão foram concedidos
a Francisco em seguida a um momento de profunda oração contemplativa no Monte
Alverne, em que o Crucificado lhe apareceu sob a forma inicial de um Serafim
com seis asas. Registrou-se que suas mãos e pés pareciam atravessados bem no
meio pelos cravos, aparecendo as cabeças no interior das mãos e em cima dos
pés, com as ponta saindo do outro lado. Os sinais eram redondos no interior das
mãos e longos no lado de fora, deixando ver um pedaço de carne como se fossem
pontas de cravos entortados e rebatidas, saindo para fora da carne. Também nos
pés estavam marcados os sinais dos cravos, sobressaindo da carne. O lado
direito parecia atravessado por uma lança, com uma cicatriz fechada que muitas
vezes soltava sangue, de maneira que sua túnica e suas calças estavam muitas
vezes banhadas no sagrado sangue. Infelizmente foram muito poucos os que
mereceram ver a ferida sagrada do seu peito, enquanto viveu crucificado o servo
do Senhor crucificado. [...] Pois tinha muito cuidado em esconder essas coisas
dos estranhos, e ocultava-as mesmo dos mais chegados, de maneira que até os
irmãos que eram seus companheiros e seguidores mais devotados não souberam
delas por muito tempo.
Buscando a perfeição, Frei
Francisco tinha por costume não revelar, senão a poucos, ou a ninguém, o seu
principal segredo, temendo que a revelação lhe trouxesse alguma predileção por
parte dos outros que resultasse em detrimento da graça que tinha recebido. Por
isso guardava sempre em seu coração e repetia aquela frase do profeta:
"Escondi tuas palavras em meu coração para não pecar contra ti".
Frei Francisco partiu para a
eternidade no início da noite de 3 de outubro de 1226, sendo canonizado menos
de dois anos depois. Biografado por vários de seus filhos espirituais, teve a
vida divulgada em verso e em prosa até mesmo por tradição oral, em que a
verdade e a lenda se entrelaçaram tão magnífica e pitorescamente que, ainda que
alguns detalhes não correspondam minuciosamente à história da família
franciscana, retratam muito bem o espírito do franciscanismo e de seu Fundador,
o seráfico São Francisco de Assis, cuja comemoração litúrgica ocorre em 4 de
outubro.
Biografia sugerida:
SÃO FRANCISCO DE ASSIS (Escritos e biografias de São
Francisco de Assis, Crônicas e outros testemunhos do primeiro século
franciscano). Petrópolis, Editora Vozes, 2000, 9ª edição.
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